A música está há milênios na humanidade, mas a capacidade de armazená-laé jovem – o disco surgiu no começo do séc. XX e só então a música passou a estar registrada em um objeto sólido (hoje um pacote de dados), para as pessoas ouvirem quando e o quanto quisessem, em casa, etc. Logo, uma corrente de vanguarda criava discos com canções conectadas por temáticas e progressões sonoras, para serem ouvidas como uma coisa só. Os Beatles, uma ex-boy band que agora queria fazer arte, estavam no meio disso em 1967. Para o oitavo álbum, eles decidiram que isso de obra unitária seria uma boa.
O formato era uma novidade e os Beatles miravam o grande público. Então a sacada genial veio na forma do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Trazendo um grupo fictício – a banda do Sargento Pimenta – que se apresentava na primeira faixa e se despedia no final, só existindo “dentro do álbum” enquanto o disco estivesse tocando (o vinil entrava em loop infinito ao "terminar" e permanecia assim até você desligar o som). Assim os Beatles ensinaram o mundo a ouvir música em álbuns: utilizando a própria “mecânica” do disco como meio, de maneira orgânica e natural. Não é o conceito nem a técnica nem os instrumentos que fazem o Sgt. relevante até hoje - pelo menos, não é nada disso sozinho; é o conjunto, a soma das partes que resulta em algo maior – a criação do mundo do sargento pimenta.
Onze anos depois, sairia Ocarina of Time...
O ludismo existe há milênios na história da humanidade. Já os videogames são mais jovens e jogos 3D ainda mais. Super Mario 64, em 1996, reviveu o prazer de correr, pular e coletar centenas de coisas por plataformas, só que agora num ambiente tridimensional que não ia só para a esquerda ou direita, mas para todas as direções ao mesmo tempo.
Mas “Zelda não pula” nem coleta centenas de itens. Zelda é sobre exploração. Zelda sempre foi sobre Hyrule. Link é mero avatar do jogador. Zelda, Ganon, Triforça são desculpas para tudo acontecer: a aventura é o mundo – o jogo é o mundo. E o 3D era esse coisa nova que a gente ainda estava assimilando com admiração inocente, vendo se era mesmo o futuro dos games. E Ocarina mirava o grande público, então pegou a bucha de transpor tudo o que era Hyrule nos quatro jogos anteriores para “o novo”.
E Ocarina fez isso, e fez bem. Eu quase disse que “cada elemento nele explora”, mas o correto é dizer “cada elemento nele deixa os jogadores explorarem" a nova maneira de funcionar do mundo. A tela título com o Link poligonal cavalgando que diz “esse jogo é 3D”, para começar a conversa. Daí você toma emprestada a visão em primeira pessoa de Navi num voo pela floresta porque é assim que se mostra como isso enriquece a narrativa visual. Na casa de Link, uns dos únicos botões que já funciona muda a câmera entre fixa e 3D, e é assim que você deixa o jogador comparar o Antes com o Agora.
Saímos na Kokiri Forest, um local meio “élfico”, o que permite que sua casa seja no topo de uma árvore e tenha uma escadinha para descer, porque é assim que você mostra que a altura no cenário não funciona mais em níveis, mas em gradações; degrau a degrau, aprendemos intuitivamente que o ambiente do jogo funciona de maneira similar à vida real.
E como você ensina o jogador a se movimentar nesse ambiente? Você coloca um labirinto com uma pedra rolando, o que sequer seria um desafio em 2D. Mas com câmera e movimentação espaciais, é preciso andar lateralmente (usando o famoso botão...), calcular o ciclo da pedra e correr na hora exata. Depois, um corredor com os primeiros inimigos: plantas carnívoras - que não andam, assim o jogador luta com a calma necessária para perceber que elas morrem de formas diferentes e deixam cair dois tipos de itens, dependendo se você acertou o golpe vertical na “cabeça” ou o horizontal cortando seus “corpos” – e isso ensina de forma natural o conceito de luta e hitbox 3D que vai funcionar por todo o jogo, evoluindo em complexidade até atingir dois momentos de clímax e perfeição: a luta contra o Dark Link, que subverte todo o conceito e exige de você uma postura agressiva, até meio kamizaze, e a luta contra o Iron Knuckle, que exige que você siga à risca as aulas de movimentação 3D que cursou pelo jogo: observação, estudo de padrões, defesa, esquiva, espera pelo momento certo e o famoso contra-ataque.
Também está aí o porquê de a primeira dungeon ser uma árvore: predominantemente vertical, ela te faz escalar e escalar até no fim, cair do alto e romper uma teia para chegar ao subsolo. O item dentro dela, primeiro gimmick do jogo, funciona tanto pela visão em primeira pessoa quanto pela mira-Z e deve ser usado contra um chefe que te demanda olhar para cima a fim de começar a batalha.
E depois disso, saímos da floresta por um corredor de árvores, fazemos uma curva e UAU! Um campo aberto, o velho, mas novo Hyrule Field. E não é preciso olhar o mapa para ver sua extensão - basta a visão natural que o jogo te dá.
Andamos pelo campo enquanto o sol cruza o céu e está entardecendo. Como se isso não fosse natural o bastante, se corrermos direto para o castelo, que é o objetivo, o tempo é perfeito para que anoiteça tão logo chegamos ao portão, que fecha na nossa cara, à noite, e temos que esperar amanhecer. Isso acontece porque é a melhor forma de contar que a passagem das horas existe aqui – sem palavras, fazendo ela afetar a exploração. É assim que você usa o mundo para ensinar suas próprias regras. É assim que você cria um mundo que, embora necessite do jogador, também parece existir por si mesmo.
Amigos nada Zeldeiros ou críticos de jogos já me disseram “Cara, Ocarina do meia-quatro é uma vida, um mundo. Você pode fazer tudo, você luta, pesca, conversa, anda à cavalo, toca músicas”.
Porque ele seria apenas uma coletânea de boas ideias para críticos e designers se não fosse divertido. Só que Ocarina (como o Sgt. Peppers) não foi feito para os críticos ou designers, mas para os jogadores (barra ouvintes). Se os especialistas não largam o osso até hoje, é pura frustração com a incapacidade de dizer, com palavras, o quão boa é cada hora de gameplay por aquela Hyrule (barra, pelo show fictício daquela banda inexistente). Não é pela passagem das horas, pelo 3D ou pelas dungeons, mas pelo conjunto. Não pelo que “representou na época” mas pelo que ainda é e sempre será dentro da mídia (cartucho ou pacote digital) registrada e imortalizada – o mundo do jogo. Porque afinal o jogo é o mundo.
Esqueça isso de “ah na época sim mas hoje em dia...”. Andar de mãos dadas não perde a graça depois do primeiro beijo. E beijar não é algo que “olha admito foi bom e revolucionário mas porque na época eu era virgem”. Andar de mãos dadas e beijar vão ser sempre bons. E se você deu o primeiro beijo antes de andar de mãos dadas, se alguém te der a mão, você vai dizer “não, sai: eu pulei essa época, não consigo apreciar”?
Se você for, então talvez Ocarina, o Sargento Pimenta e eu estejamos mesmo ultrapassados. Mas se não, bem vindo à primeira Hyrule poligonal. Se você joga para se divertir, tudo nela é divertido; se joga para estudar, eis um pacote que vale como curso completo. Se for pelos dois, vai ver que eles andam de mãos dadas e vai querer andar junto também.
Esse post é parte da série 30 Anos dA Lenda, um especial feito por um texto sobre cada jogo da série Zelda vistos hoje em dia. Cada texto é assinado por um autor, HLs ou convidados especiais.